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quinta-feira, 8 de março de 2012

O dilúvio da professora Alda - por RODRIGO MELO


foto: José Nazal
Quando eu era moleque, a professora Alda entrou na sala e disse que a terra, ao completar dois mil anos, daria voltas mais rápidas, aproximando-se do sol, e, por conta disso, as geleiras derreteriam e todas as cidades do mundo ficariam debaixo d’água. Passei meses pensando naquilo. Fazia contas para saber quantos anos eu teria em 2000 e se já havia aproveitado o suficiente. O resultado era sempre o mesmo.
           - 29, professora!
 Hoje, um bocado de tempo depois, vejo o Morro de Pernambuco (que, segundo me disseram, quase foi comprado pelo filho de Lula(?))
se aproximar da Praia do Cristo e chego à constatação de que as geleiras prorrogaram um pouco mais o nosso prazo. Melhor assim. Nem os turistas que trafegam pela Soares Lopes, nem os vendedores de cachorro quente, nem eu, nem você, tampouco o prefeito, a professora Alda (se estiver viva, nunca mais encontrei) ou o filho de Lula gostaríamos de trocar o calçamento de pedras portuguesas pelo fundo abismal do Atlântico.
Então estou numa outra avenida, a Litorânea, rumo à reunião na casa de um amigo. Penso que Litorânea é um bom nome para uma avenida, assim como Esperança, enquanto lembro que o famoso ator Zé Wilker já esteve aqui, naquele hotel que fica na esquina, e quando perguntaram o que ele tinha achado da cidade, ele respondeu que nada, que só tinha visto urubus. Considerei uma resposta maldosa e, porque não dizer, chata. E mesmo que seja invenção, que ele nunca tenha dito isso ou sequer tenha estado em Ilhéus, guardo até hoje uma impressão ruim do Wilker. Sei lá, acho que ele tem cara de esnobe e preconceituoso, o tipo de gente que veste um capa preta e sai atirando por aí.
De qualquer modo, ao olhar ao redor, fico com vaga impressão de que ele podia ter lá a sua razão: enxergo o mato invadindo violentamente a calçada destruída, o cheiro do esgoto exalando no ar e entrando pelas narinas, e, lá em cima, as imensas sombras negras a planar.
(Uma pergunta: por onde andam os badoques e as espingardas de ar comprimido?).

Na reunião, café, leite, torradas, água e cinzeiro. O que vem antes, a arte ou o artista? Eu, com receio de desapontar, preferi não responder.
Porque, conforme aquela música, não dá pra cantar sem querer ferir ninguém. A tal suscetibilidade alheia. Fico nessa sinuca e, na dúvida, tenho escolhido não cantar. Vale que mantenho as amizades.

          - Passa o adoçante, por favor.

A arte antes do artista, digo inaudivelmente. O artista, desconfio, deve vir sempre a reboque.
Mas parece que o mundo mudou mais do que o homem. O mundo se abriu. Já o homem continua do mesmo jeito que os personagens de Dostoievski, agradando pra barganhar.
E eu, tudo indica, ando nesse bolo.
Faço então agora, como se diz, o meu “Mea Culpa”: na verdade, não sou muito chegado em café, perco o sono, assim como sempre alimentei um distanciamento danado da história de Tenório Cavalcante – medo ou falta de compreensão, sabe-se lá.
O mesmo sentimento com relação à campanha pela nova ponte – torço para que dê certo, ao mesmo tempo em que fico imaginando qual vai ser o hype do próximo verão.
Outra coisa, antes que me esqueça: pode parecer maluquice, mas calculei que a Praia do Cristo e o Morro de Pernambuco, no futuro, daqui uns trinta anos mais ou menos, vão se juntar e se transformarão numa coisa só.
Feito o Zé Wilker e as imagens dos urubus.
Dostoievski e o abismo humano.
Ou a terra, quando o dilúvio da professora Alda chegar.