foto: José Nazal |
Quando eu era
moleque, a professora Alda entrou na sala e disse que a terra, ao completar
dois mil anos, daria voltas mais rápidas, aproximando-se do sol, e, por conta
disso, as geleiras derreteriam e todas as cidades do mundo ficariam debaixo
d’água. Passei meses pensando naquilo. Fazia contas para saber quantos anos eu
teria em 2000 e se já havia aproveitado o suficiente. O resultado era sempre o
mesmo.
- 29, professora!
Hoje, um
bocado de tempo depois, vejo o Morro de Pernambuco (que, segundo me disseram,
quase foi comprado pelo filho de Lula(?))
se aproximar da Praia do Cristo e
chego à constatação de que as geleiras prorrogaram um pouco mais o nosso prazo.
Melhor assim. Nem os turistas que trafegam pela Soares Lopes, nem os vendedores
de cachorro quente, nem eu, nem você, tampouco o prefeito, a professora Alda (se
estiver viva, nunca mais encontrei) ou o filho de Lula gostaríamos de trocar o
calçamento de pedras portuguesas pelo fundo abismal do Atlântico.
Então estou
numa outra avenida, a Litorânea, rumo à reunião na casa de um amigo. Penso que
Litorânea é um bom nome para uma avenida, assim como Esperança, enquanto lembro
que o famoso ator Zé Wilker já esteve aqui, naquele hotel que fica na esquina,
e quando perguntaram o que ele tinha achado da cidade, ele respondeu que nada,
que só tinha visto urubus. Considerei uma resposta maldosa e, porque não dizer,
chata. E mesmo que seja invenção, que ele nunca tenha dito isso ou sequer tenha
estado em Ilhéus, guardo até hoje uma impressão ruim do Wilker. Sei lá, acho
que ele tem cara de esnobe e preconceituoso, o tipo de gente que veste um capa
preta e sai atirando por aí.
De qualquer
modo, ao olhar ao redor, fico com vaga impressão de que ele podia ter lá a sua
razão: enxergo o mato invadindo violentamente a calçada destruída, o cheiro do
esgoto exalando no ar e entrando pelas narinas, e, lá em cima, as imensas
sombras negras a planar.
(Uma pergunta:
por onde andam os badoques e as espingardas de ar comprimido?).
Na reunião,
café, leite, torradas, água e cinzeiro. O que vem antes, a arte ou o artista?
Eu, com receio de desapontar, preferi não responder.
Porque,
conforme aquela música, não dá pra cantar sem querer ferir ninguém. A tal
suscetibilidade alheia. Fico nessa sinuca e, na dúvida, tenho escolhido não
cantar. Vale que mantenho as amizades.
- Passa o adoçante, por favor.
A arte antes
do artista, digo inaudivelmente. O artista, desconfio, deve vir sempre a
reboque.
Mas parece que
o mundo mudou mais do que o homem. O mundo se abriu. Já o homem continua do
mesmo jeito que os personagens de Dostoievski, agradando pra barganhar.
E eu, tudo
indica, ando nesse bolo.
Faço então
agora, como se diz, o meu “Mea Culpa”:
na verdade, não sou muito chegado em café, perco o sono, assim como sempre
alimentei um distanciamento danado da história de Tenório Cavalcante – medo ou
falta de compreensão, sabe-se lá.
O mesmo
sentimento com relação à campanha pela nova ponte – torço para que dê certo, ao
mesmo tempo em que fico imaginando qual vai ser o hype do próximo verão.
Outra coisa,
antes que me esqueça: pode parecer maluquice, mas calculei que a Praia do
Cristo e o Morro de Pernambuco, no futuro, daqui uns trinta anos mais ou menos,
vão se juntar e se transformarão numa coisa só.
Feito o Zé
Wilker e as imagens dos urubus.
Dostoievski e
o abismo humano.
Ou a terra,
quando o dilúvio da professora Alda chegar.