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quinta-feira, 12 de abril de 2012

Fófis - por RODRIGO MELO

Era uma noite quente e cheia de estrelas num apartamento que não era o meu. Na tv, um cara apontava uma arma na direção de um outro cara. A arma então disparou, a fumaça subiu – no chão, a mancha vermelha no peito do bandido.
Quem eu seria naquela cena, qual dos dois? Vez por outra eu tinha umas crises existenciais, ficava querendo saber qual era mesmo o meu papel no mundo.
Quando eu era menor, e o mundo mais fácil, eu não pensava muito em coisas assim.

              - Tá pensando em quê, Fófis?


Ela gostava de chegar de repente e de ficar me observando, passando as unhas nas minhas costas, a suspirar.

              - Diz, tava pensando em quê?
              - Em nada.
              - Hum.
              - Sério.
              - Ah, diiizzzzz...
              - Eu só estava assistindo tv mesmo. O nome desse loiro aí com a arma na mão é Richard Widmark, sabia?
              - Widmark? – ela perguntou.
              - Isso.
              - Simpático.
              - Dizem que era gay, mantinha um caso com outro famosão.
              - Esse cara era bicha?
              - Dizem. Há muitas lendas, você nem acreditaria. Já falaram até do Belchior.
              - O Belchior eu também não acredito que seja bicha, fófis. Quem era o outro famosão?
              - Não lembro – eu respondi, me levantando -, não gosto dessa brincadeira de fófis, já falei contigo. Vou beber água.
              - Ei...

Encontrei um resto de frango na geladeira, mas não quis, me sentia um tanto enjoado. Peguei a coca-cola e coloquei quatro dedos com gelo num copo. Acendi um cigarro e sentei-me num banco, pensando na vida. As mesmas perguntas de sempre. Fechei os olhos e por um instante tentei imaginar-me longe dali. Era fácil, mas de alguma forma eu não conseguia. Abri os olhos e vi o reflexo das luzes pela janela da cozinha, as estrelas e a cidade lá fora, Ilhéus, no sul da Bahia, o lugar em que eu morava. Era bonito aquilo. Algo, naquele momento, estava acontecendo em algum outro lugar, eu pensei. Algo sempre estava acontecendo em algum outro lugar.
Ela parecia estar cochilando. Sentei do seu lado e encostei a cabeça no braço do sofá.

              - Estava gelada a água, amore?

Ela era cheia de surpresinhas..

              - Na verdade bebi Coca-cola, só um pouco pra molhar a boca.
              - Comprei pra você mesmo – aproximou-se e me deu um beijo na testa -, pode beber tudo se quiser.

Ela tinha 27 anos e nos conhecemos por conta de um amigo – a mulher dele era irmã dela. Foi na volta, dentro do meu fusca bege, que meses depois seria roubado na porta de uma boate, que nos embolamos pela primeira vez.

              - Não quer comer um frango, amore? Fiz com molho de gengibre, tá uma delícia.
              - Não estou muito pra gengibre hoje.

Era geóloga, mexia com pedras, matérias mortas. Criava um gato preto que às vezes desaparecia e, numa noite sem lua ou estrelas, se disse bruxa pra mim: abriu uma caixa e dela tirou facas, cartas com desenhos estranhos, depois falou sobre a minha vida, que eu ainda teria bastante surpresas, acontecimentos, que minha alma era azul ou verde, mas que havia uma outra cor nela e que seria necessário enfrentar os meus fantasmas e tudo o que eu trazia entranhado em mim.
Eu não gostava daquelas conversas, os incensos acesos, e tudo foi me enchendo um pouco.

              - E uvas, quer?
              - Também não.
              - Nossa, você tá chato.

Eu pensava que éramos diferentes demais, quando ela começou a me alisar: uma mulher de sonhos, enquanto eu era um desses caras meio invocados, influenciado pelos filmes de Mcqueen e Sam Shepard e pelas letras das canções que meu pai escutava, Serge Gainsbourg, Sinatra e toda essa turma, com os dogmas acumulados, um sujeito meio difícil de lapidar. Eu tinha débitos – Deus, na sua imensa sabedoria, conhecia aquele homem, perdido, em busca de quase nada.
Peguei em sua mão, era branca e macia, e apertei.

              - Acho que vou indo.
              - Ué... – ela falou e ficou me encarando.
              - Marquei com um camarada de conversar sobre um projeto.
              - Agora?
              - É.
              - Pensei que dormiria aqui, faz mais de uma semana que não aparece.
              - Eu sei. É que essa reunião é importante. Eu não tinha te falado?
              - Não.

Levantei-me, ela veio atrás. Parei na porta e nos beijamos. Um gosto de gengibre invadindo a boca, senti nojo, mas continuei. Em seguida ela se abaixou e abriu o meu zíper. O que faço, Senhor? Depois de alguns minutos, segurou em minha mão, me levou até o quarto e eu não vou dizer que foi ruim: ela era carinhosa e me fazia bem: a gente suando e se abraçando, o gato circulando entre nossas pernas, e tínhamos o ritmo certo, havia vida ali.
Quando acabamos, tomei um banho e me vesti. Ela estava na cozinha.

              - Agora tenho mesmo que ir.

Virou-se e tentou me beijar outra vez. Eu disse que sua boca estava suja, embora não estivesse.

              - Olha essa estória de projeto, fófis – ela disse -, quero que me conte tudo depois.
              - Claro. Só não me chama mais de fófis, tá? Acho esse negócio muito assim.
              - Tá certo então, amore, prometo que não te chamo mais de fófis – e sorriu. - Amanhã você me liga?

Enxerguei uma tristeza nos seus olhos, medo misturado com outra coisa, talvez a monotonia da vida e dos dias, e então senti pena. Ao mesmo tempo, não me considerava responsável. Cada um cava seus próprios buracos, eu pensei. Cruel, mas de alguma forma todo mundo é um pouco assim.
Desci as escadas. Meti a mão no bolso, duas chaves, a do carro e a de casa, e uma nota de vinte reais. Eu não estava bem, mas de algum modo pensava que tudo aquilo era um fase, que uma hora iria passar.
E então o céu continuava cheio de estrelas quando saí do prédio, as luzes da cidade também estavam lá, acendendo e apagando, piscando sem parar. Era sensacional ver aquilo de onde eu estava. O nome do outro cara, o famosão, lembrei repentinamente, era Gary Grant, mas isso não fazia mais tanta diferença. Entrei no carro e coloquei uma música para tocar, uma das que gostava, e fui guiando pela Avenida Proclamação, em Ilhéus, no sul da Bahia, numa dessas noites quentes de verão. Não sabia bem o que estava acontecendo, simplesmente olhava para a rua e para as pessoas que caminhavam de mãos dadas nas calçadas: nem bandido nem mocinho, nem Widmark nem Mcqueen, apenas um sujeito à procura de alguma coisa, talvez de duas ou três respostas, não muito, mas, enquanto isso, seguindo em frente, para o outro lado da cidade, lá onde eu morava, cantando o refrão da música baixinho e sentindo, ou pelo menos imaginando sentir, que a cada metro que o carro vencia eu ia também evoluindo e melhorando um pouco mais, como se aquele fusca bege não fosse somente a minha condução, mas também uma espécie de portal que me levaria para o mundo que eu imaginava existir quando era menor.










Rodrigo Melo é filho de Eduardo e Márcia, irmão de Juliano e Murilo, casado com Thalita, pai de Amaralina, uma menina linda, e é também brodão de Diná e Brooks, que joga umas danças por aí. Além disso, escreve uma coluna, blablablá, no diário de ilhéus, quase todos os sábados.

  


fonte da imagem: http://psd.fanextra.com/articles/30-beautiful-examples-of-surreal-photography/