Na falta de tramas palacianas matriciais na sua literatura dramática –
à maneira de um Shakespeare, por exemplo –, cabe ao teatro brasileiro
vasculhar o chão da senzala, os cômodos da casa-grande, os corredores e
os gabinetes da administração para colocar o poder em xeque diante dos
ritos e vícios públicos e privados. Afinal, nossa modernidade nos palcos
conta pouco mais de 60 anos, um piscar de olhos se comparada às
tradições seculares das artes cênicas em certos cantos do mundo.
Ao apropriar-se do clássico O inspetor geral, de Nikolai
Gógol, o Teatro Popular de Ilhéus (TPI) exercita uma espécie de
antropofagia com causa. Subverte as artimanhas do andar de cima com as
ferramentas e a poética da cultura popular. Evoca o cordel, a
manipulação de bonecos e os folguedos para deglutir o sistema com a
sofisticação da sátira universal (trata-se da primeira incursão do autor
russo pela dramaturgia no longínquo ano de 1836, em pleno regime
czarista). O resultado é um espetáculo com liberdade e ironia para ler
as contradições de seu tempo e lugar. No caso, o município-berço no sul
da Bahia e o contexto das reviravoltas institucionais transcorridas
desde meados da década passada, impulsionadas pela consciência e
mobilização dos moradores contra a corrupção.
O enredo de Gógol vem a calhar não só pela alegoria cômica, apesar da
tristeza que encerra o espelhamento humano disforme, mas pelos fatos
transbordantes da história recente de Ilhéus e, por extensão, de boa
parte do território brasileiro. Entre as causas do impeachment factual
do prefeito, em 2007, estão o desvio de verbas e o nepotismo. Na
montagem anterior do TPI, Teodorico majestade – as últimas horas de um prefeito,
de 2006, o autor e diretor Romualdo Lisboa já antevia o desfecho
provocado pela revolta popular nas ruas. Trata-se de um raro exemplo da
cena brasileira em que o conteúdo absorve o calor da hora do noticiário
sem sucumbir ao oportunismo das diferenças partidárias de turno. Os
criadores souberam preservar o senso de pesquisa que aprenderam a nutrir
em mais de 15 anos de trajetória e não chafurdaram a forma e a
linguagem no lamaçal das denúncias. Afinal, “todos nós estamos na lama,
mas alguns sabem ver as estrelas", como escreveu Oscar Wilde.
A arte transcende o protesto, conferimos em Teodorico majestade.
Esse perspectivismo traduz o sentido de vigilância do núcleo para não
perder de vista o seu projeto artístico continuado. Por isso a coerência
com que Gógol lhe atravessa o caminho. A comédia realista é acrescida
de camadas de caracterização fabular, como na gestualidade quebrada das
interpretações, em referência à pantomima ou à animação; no figurino de
base crua que equipara as funções e castas burocráticas; e no espaço
cênico capitaneado por painéis com estampas de xilogravuras saltando das
páginas do cordel feito os personagens que os atores trazem à tona.
Aldenor Garcia, Elielton Cabeça, Ely Izidro, Guilherme Bruno, Hermilo
Menezes, Potira Castro, Rogério Matos, Takaro Vitor e Tânia Barbosa
carregam uma expressão nata brejeira, o olhar aparvalhado, a máscara
codificada do grotesco. Alguns remetem de pronto à figura do bufão que
vem para contradizer e não para explicar.
Pensar oralidade é pensar música. O cancioneiro é fortemente
incorporado à identidade do grupo. Os intérpretes correspondem aos
brincantes em sua totalidade: uma presença capaz de triangular com o
espectador e os instrumentos musicais sem desequilibrar o compasso da
ação física e das pelejas verbais. A transcriação do texto por Lisboa
alinhava falas/estrofes em sete versos, suscitando uma escuta em espiral
para a comédia de erros precipitada diante de nossos olhos.
A estrutura narrativa e os procedimentos da encenação permitem divisar nesse Inspetor geral
a atualidade dos costumes, a cultura do jeitinho, o coronelismo da Ilha
Bela paródica, mas nem tanto. O mandatário, a primeira-dama, os
secretários e todos os apaniguados são sacudidos pela malícia de um
impostor que os faz de títeres com a mesma moeda. A contundência
temática desperta a crítica e convida à autocrítica da sociedade em
relação ao desvio de caráter das autoridades eleitas e à mal disfarçada
cumplicidade do dito cidadão comum que também corrobora escorregadelas
em seu cotidiano, reforçando o ciclo vicioso que não começou ontem e não
vai acabar amanhã. A bile faz parte do mecanismo da comédia.
Na versão baiana para o clássico, os comentários entremeiam diálogos e
chamam a plateia interlocutora a perceber os arranjos, os conflitos de
interesses. Esse dispositivo épico fica patente desde o início da
apresentação, quando o ator que interpreta Zito (Vitor), o mais fuleiro
dos personagens, funcionário de pensão, “desprende” do varal os corpos,
até então estáticos, e sopra-lhes a vida em ficção para a história que
virá. Zito tem a ver com o arquétipo de João Grilo, de Pedro Malasartes.
“De alguma maneira, ele retrata o povo: se corrompe, quer matar a fome e
alçar novos voos, mesmo que tenha que fazer pequenas trapaças”, afirma
Lisboa. “Também o ator que faz o impostor/inspetor traz as marcas desse
povo visto sem romantismos, que aproveita determinadas ocasiões para
tirar proveito próprio.”
Em Teodorico majestade, era ele mesmo, o autor e diretor,
quem subia ao palco na abertura para animar os seres de carne e osso
dependurados no varal. Na nova montagem, ele delega essa gênese
simbólica ao mediador colado à imagem do palhaço que vira tudo e todos
do avesso. A opção relativiza o elogio presumido do povo. “Aquilo que em
Teodorico tinha um aspecto de vingança, em O inspetor é quase que uma expiação”, raciocina Lisboa, que tem em Brecht um farol.
Conhecer o trabalho e o pensamento em cena do Teatro Popular de
Ilhéus reafirma a capacidade dos artistas do interior de contracenar de
cabeça erguida com os pares das metrópoles do país. Por meio das duas
recentes criações exibidas em São Paulo, no curto prazo de três meses,
de maio a julho de 2011, o núcleo diz a que veio, ética e esteticamente,
desde o seu quintal. Pisa o imaginário e a realidade da região
cacaueira para gerar mais perguntas que respostas. E faz a arte gritar
elaborada no riso.
Por Valmir Santos
(19 de setembro de 2011)
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