A tesoura estava largada dentro da xícara, e não pude pensar quando foi isso, que na cozinha eu usasse a tesoura e depois, sem atenção, depositasse a tesoura ali, na pia, dentro da xícara, como um porta-lápis. O metal enferrujado criava no contato com a porcelana um ruído seco e agressivo na minha cabeça, embora a tesoura estivesse totalmente imóvel, com as pontas fechadas num ponto da circunferência de dentro do copo, de modo que todo o corpo do objeto se estirava reto numa transversal, como se debruçasse para fora da xícara; como se fosse para espiar a pia. Era a estranheza da cena que simulava o ruído.
Eu levantei
a xícara pela alça, e a tesoura deslizou-se por meia borda, como uma bailarina,
desenhando um ruído diferente do que eu havia criado, e espiei para dentro. Do
alto, por entre as pernas fechadas, minava uma gota branca, descendo como uma
seiva para alcançar por fim, depois daquele giro dançante, a porcelana. Foi o
leite. E eu pude, como no cinema, ouvir a tessitura do corte da lâmina sobre o
papelão.
No entanto,
ainda não era claro para mim o som de quando aberta a caixa de leite, e eu
supostamente me servisse de um bom copo, eu me valesse do desfrute daquele gole
para ser displicente e atirar para dentro da xícara a tesoura, que decerto
cairia num rodopio golpeando a beirada, quicando metálica na porcelana,
arranhando com a ponta o fundo da xícara. Quando foi isso? Quando foi que eu
bebi leite? E imagine você a minha surpresa quando eu descobri que não havia
leite, na pia, nem na geladeira, e nem caixa vazia rolando pela área dos
fundos, e que lembrei que por nenhum acaso eu tinha comprado leite durante a
semana, e mais, que eu não gostava de leite.
A tesoura
obscena dentro da xícara escondia por entre as pernas um segredo.
Naturalmente
que cheirei a xícara, e não solucionado o caso, resolvi por o dedo para dentro,
inclinando a xícara para sobrar no canto, um tanto bom que pudesse molhar o
dedo, mas a tesoura caiu, escapulindo pela minha mão numa acrobacia esquisita e
perfurou o meu pé com o mesmo ruído que ecoava na minha cabeça. Era o Diabo,
era tudo dele, o Come-brasa, o Capeta, o Zói-torto, o Tranca-rua, o
Rabo-de-seta, o Tinhoso, o Afastado, era tudo dele, aquele Cão. Quando corri
pro banheiro que vi, o tubo de cola cortado a tesoura, com que o Diabo fixara o
recado: estive aqui.
Daniel Prudente é escritor e artista plástico