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domingo, 2 de outubro de 2011

Estive aqui - crônica de Daniel Prudente


A tesoura estava largada dentro da xícara, e não pude pensar quando foi isso, que na cozinha eu usasse a tesoura e depois, sem atenção, depositasse a tesoura ali, na pia, dentro da xícara, como um porta-lápis. O metal enferrujado criava no contato com a porcelana um ruído seco e agressivo na minha cabeça, embora a tesoura estivesse totalmente imóvel, com as pontas fechadas num ponto da circunferência de dentro do copo, de modo que todo o corpo do objeto se estirava reto numa transversal, como se debruçasse para fora da xícara; como se fosse para espiar a pia. Era a estranheza da cena que simulava o ruído.

Eu levantei a xícara pela alça, e a tesoura deslizou-se por meia borda, como uma bailarina, desenhando um ruído diferente do que eu havia criado, e espiei para dentro. Do alto, por entre as pernas fechadas, minava uma gota branca, descendo como uma seiva para alcançar por fim, depois daquele giro dançante, a porcelana. Foi o leite. E eu pude, como no cinema, ouvir a tessitura do corte da lâmina sobre o papelão.
No entanto, ainda não era claro para mim o som de quando aberta a caixa de leite, e eu supostamente me servisse de um bom copo, eu me valesse do desfrute daquele gole para ser displicente e atirar para dentro da xícara a tesoura, que decerto cairia num rodopio golpeando a beirada, quicando metálica na porcelana, arranhando com a ponta o fundo da xícara. Quando foi isso? Quando foi que eu bebi leite? E imagine você a minha surpresa quando eu descobri que não havia leite, na pia, nem na geladeira, e nem caixa vazia rolando pela área dos fundos, e que lembrei que por nenhum acaso eu tinha comprado leite durante a semana, e mais, que eu não gostava de leite.
A tesoura obscena dentro da xícara escondia por entre as pernas um segredo.
Naturalmente que cheirei a xícara, e não solucionado o caso, resolvi por o dedo para dentro, inclinando a xícara para sobrar no canto, um tanto bom que pudesse molhar o dedo, mas a tesoura caiu, escapulindo pela minha mão numa acrobacia esquisita e perfurou o meu pé com o mesmo ruído que ecoava na minha cabeça. Era o Diabo, era tudo dele, o Come-brasa, o Capeta, o Zói-torto, o Tranca-rua, o Rabo-de-seta, o Tinhoso, o Afastado, era tudo dele, aquele Cão. Quando corri pro banheiro que vi, o tubo de cola cortado a tesoura, com que o Diabo fixara o recado: estive aqui.

Daniel Prudente é escritor e artista plástico