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domingo, 13 de novembro de 2011

Comer com a mão - Daniel Prudente


Despejei a farinha por cima da sopa amarela de dendê, e tinha tempo que não fazia isso, de empurrar os dedos para o fundo do prato e começar a cimentar o peixe; de em pouco, o arroz se amassava com a farinha e acabava por despedaçar as postas de Vermelho, cobrindo o couro dos dedos com uma massa argilosa e suculenta.  Comer com a mão tinha-me sido ensinado por meu pai em segredo, no tempo em que meu irmão e eu enchíamos a pia dos fundos para afogar os brinquedos, e minha mãe não via. 
 
Lembrei-me que depois de grande, eu vi minha avó comendo assim também, e que na casa deles em Canavieiras, quando meu pai fosse moço, devia ser bem comum e gostoso.
Quando acabei com o peixe, naturalmente que chupei barulhentamente cada dedo, lembrando como isso irritava até meu pai, e fui para pia dos fundos lavar as mãos. Acho que era então que meu irmão trazia para a pia os brinquedos para a gente afogar, e nisso a gente levava a tarde inteira, até que minha mãe aparecesse com a conta de água. Então brigávamos para puxar o tampão e ver cada boneco beirar a borda e descer o redemoinho para o fundo do ralo; e recomeçávamos a brincar, executando os salvamentos dos brinquedos que mais gostávamos.
A gente não parava de brincar.
Hoje eu não paro de comer.


 
Daniel Prudente é escritor, ator e artista pástico