Gustavo Felicíssimo é poeta e ensaísta, natural de Marília, SP, e radicado na Bahia desde 1993. Fundou, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi seu editor. Foi Diretor de Projetos da Fundação Cultural de Ilhéus entre os anos de 2009 e 2011.
Recebeu diversos prêmios literários, entre eles destacam-se: Bahia de todas as letras (BA), Yoshio Takemoto (SP), Patativa do Assaré de Literatura de Cordel (Ministério da Cultura), Maximiliano Campos de contos (PE).
Embora possua vasta produção, publicou apenas dois livros com poemas seus, ambos de haikais e formas congêneres originárias do Japão. São eles: “Silêncios” e “Outros Silêncios”. Atua também na editora Mondrongo, que vem movimentando o cenário da literatura no sul da Bahia.
Nesta entrevista, ele fala sobre aspectos diversos de sua vida como poeta e outras atividades que desenvolveu e vem desenvolvendo.
O que busca o escritor Gustavo Felicíssimo?
Tenho mais dúvidas que certezas sobre essa questão. Entretanto, meu sentimento mais sincero diz que minha busca, em um sentido maior e mais profundo, está circunscrita à superação. Anseio por superar-me sempre, sobretudo como ser humano, e finalmente como escritor.
Você transita entre diversos gêneros literários, como o conto e a crônica, a poesia e o cordel, mas tem dedicado especial atenção aos haikais. Como surgiu seu interesse por eles?
O haikai é uma paixão antiga. Trata-se de uma forma literária oriunda do Japão, cujo precursor no Brasil é o baiano Afrânio Peixoto. Meu interesse surgiu quando conheci a obra de Abel Pereira, haikaísta ilheense, fundador e primeiro presidente da Academia de Letras de Ilhéus. Sua obra é um monumento do haikai brasileiro. Em princípio chamou-me a atenção a sua brevidade. São apenas três versos e um universo de possibilidades. Depois, conforme me aprofundei nos estudos, percebi como seria difícil fazer haikais, pois é uma forma literária que está por demais ligada ao modo de ser e da filosofia dos povos orientais. Isso me deu a exata noção de que eu só poderia fazer um haikai à minha maneira, algo que refletisse a minha visão de mundo e, digamos, meu modo particular de perceber a natureza física e a natureza humana. Daí que todo haikai que concebo é motivado por algo vivido por mim. Qualquer aspecto da natureza que me chame a atenção pode virar um haikai, como esse:
do rio à montanha
serpenteia uma estradinha –
solitário esplendor
No mais é o seguinte: tenho dois livros de poesia publicados, “Silêncios” e “Outros Silêncios”, nos quais exploro formas congêneres da poesia japonesa. Daí a falsa impressão de que tenho me dedicado mais ao haikai que a outras formas literárias. Quem visitar o Sopa de Poesia (http://www.sopadepoesia.blogspot.com/) perceberá o quanto minha produção é plural, pois o espírito criativo não nos dá a condição de nos dedicarmos mais a essa que àquela configuração.
Você é um estudioso da poesia grapiúna. Em sua opinião, o que há de mais especial nela?
Não penso no que há de mais especial, senão na genialidade de alguns autores, a começar por Sosígenes Costa, Jorge Medauar, Telmo Padilha e Ildásio Tavares, autores que demonstraram um domínio excepcional da poesia, sua natureza conceitual, afetiva, sensorial e imaginativa. Qualquer metodologia crítica, entendido aqui como teoria do processo criativo, empregada a um desses autores, resultará em uma avaliação positiva. Nossos contemporâneos vão pelo mesmo caminho. Quem quiser uma prova do que digo basta se debruçar sobre Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna, obra que organizei e foi publicada por um consórcio entre a Editus e a Via Litterarum. Verão que os doze poetas antologiados dão segmento à melhor tradição da nossa poesia. Entretanto, se tivesse que ressaltar um aspecto, diria ser relevante o fato de todos eles transitarem por temáticas universais, enquanto os ficcionistas se dedicaram mais aos aspectos da cultura regional. Somando-se tudo isso, temos a literatura mais pujante da Bahia no século passado e uma das mais promissoras no momento.
Você estuda Letras na Universidade Estadual de Santa Cruz. De que maneira você percebe que a instituição trata a literatura grapiúna?
Vergonhosamente. Nossos professores, sobretudo os de fora, desconhecem a instituição que é a Literatura Grapiúna. E sendo assim, como não são exigidos nesse aspecto, os alunos deixam o curso com um déficit de conhecimento muito grande sobre a matéria. O ideal seria que tivéssemos ao menos um grande seminário ou um colóquio anual sobre o tema.
Você trabalhou na Fundação Cultural de Ilhéus como Diretor de Projetos. De que forma foi possível sua contribuição à cultura da região como atuante nessa função?
Não foi um período fácil. A falta de recursos prejudica a instituição. E a ausência de uma política sensível à causa artística também. Não dá nem pra fazer um calendário cultural para o município, pois não se sabe se os recursos chegam e os que chegam, quando chegam. É uma lástima! Pra piorar, o município não possui uma situação fiscal confortável, que possibilite o desenvolvimento de projetos e a captação de recursos para os mesmos. Dirigir a Fundação Cultural de Ilhéus não é fácil. Tem que ter muito, mas muito jogo de cintura mesmo. Tal conjuntura impossibilita vôos mais altos, mas consegui desenvolver ações ligadas à literatura, à música, ao teatro. Não vou aqui nomear os projetos aos quais estive à frente. Importa mais a certeza que procurei dar a minha contribuição, sobretudo aos grupos e vozes marginalizadas pelo poder público, como só assim poderia ser. Aprendi muito com o Maurício e com o Pawlo Cidade, eles nada têm a ver com esse rol de estupidez que campeia o poder público da cidade. Lamento por eles e pelos artistas que os administradores municipais (falo aqui dos políticos exercendo cargo público) ignorem o fato de que os artistas são os grandes heróis, os grandes baluartes de Ilhéus, ou seja, aqueles que fazem a fama do local e com isso geram divisas imensuráveis para o município.
Por que você se recusa a ser membro da Academia de Letras de Ilhéus?
Algumas pessoas que reputo como “reserva moral” da Academia já me convidaram a concorrer a uma vaga naquela casa, assegurando-me todo apoio, mas acho que não tenho o perfil de um acadêmico. Ademais, a Academia de Letras de Ilhéus é um lugar inóspito e frio para com o escritor. Que tipo de membros forma hoje o corpo daquela casa? Um mestre de cerimônia que sonha ser seu presidente, alguns advogados, professores e uma messe de gente que em nada contribui com nossas letras, mas que, certamente por motivos fúteis, se digladiam por uma cadeira naquela casa. Gente que seguramente ignora o fato de uma academia de letras ter por fim a cultura da língua nacional, sendo necessário para ser membro de uma delas ter contribuído com “obras de reconhecido mérito ou livros de valor literário”, pois criadas à semelhança da Academia francesa, são esses os seus principais valores.
Desse modo, se levamos em conta os valores supracitados, não restam membros suficientes para compor as 40 cadeiras da Academia de Letras de Ilhéus. Ou seja: muitos teriam que ser convidados a entregarem o fardão. Já os escritores que estão de fora e fazem jus aos princípios acadêmicos, gente como Jorge de Souza Araújo, Adylson Machado e Agenor Gasparetto, apenas para citar alguns, nem de longe se interessariam hoje por uma vaga. Aliás, a respeito de Gasparetto, vale ressaltar que recentemente ele foi incluído em uma querela entre acadêmicos da ALITA – Academia de Letras de Itabuna, por ser escolhido para uma suplência à vaga de imortal. “Suplente à imortalidade”. Essa é nova e mais parece uma piada de muito mau gosto, além de demonstrar o nível em que se encontram as tais academias de letras. A par disso, ressalte-se que o beneficiário de tal benesse jamais fora consultado se gostaria de ser agraciado por tão alto beneplácito. E posso garantir: Gasparetto não almeja vaga nessa ou noutra academia qualquer.
Por outro lado, aqueles que se encaixam no perfil acadêmico – “eles” sabem quem são –, embora sejam poucos, precisam tomar as rédeas da situação e provocar uma reviravolta no cotidiano daquele que deveria ser um templo do saber e da valorização da obra dos nossos escritores e letras, sobretudo.
Acontecem ali coisas espantosas, como a negligência com o lançamento de uma obra reunindo material inédito de Sosígenes Costa, membro fundador da casa e, segundo o crítico José Paulo Paes, é o maior poeta baiano ao lado de Castro Alves. O que mais nos espanta é que essa negligência à obra e à memória de Sosígenes, sucedeu justamente por parte dos membros da Academia de Letras de Ilhéus que, infelizmente, não se fizeram presentes ao evento que ocorreu em sua própria sede, muito embora a maioria daqueles que residem na cidade tenham recebido em mãos, e antecipadamente, um convite formal. Não pegou bem mesmo, pois até a Academia de Letras da Bahia tinha aqui um representante, o escritor Aleilton Fonseca.
Mas esse descaso não é novo, pois em 2008, ano do centenário de Abel Pereira, data que deveria ser entusiasticamente celebrada pela Academia de Letras de Ilhéus, entidade da qual foi seu fundador e primeiro presidente, passou em brancas nuvens.
Você faz parte da Mondrongo Livros, editora do Teatro Popular de Ilhéus. Qual a principal meta/visão da editora e de que forma você espera que ela contribua para a literatura da região?
Logo após a minha saída da Fundação Cultural de Ilhéus recebi o convite do Romualdo Lisboa para fundar a editora. Foi tudo tão rápido que não deu tempo nem de descansar um pouquinho. A Mondrongo Livros é uma editora vinculada ao Teatro Popular de Ilhéus, grupo que fundou e mantém na cidade a Casa dos Artistas. Sendo um selo editorial sem fins lucrativos, tem a finalidade de auxiliar e prestar serviço aos escritores locais que pretendam publicar em livro as suas obras, bem como dinamizar a atividade literária local, promovendo encontros, debates, cursos e concursos, a fim de dar uma contribuição salutar à literatura grapiúna, e porque não, baiana também. Indo um pouco além, minha pretensão é que a Mondrongo se transforme em uma referência para o meio editorial da Bahia.
Os e-books (livros eletrônicos) são populares na Internet. Qual a sua opinião sobre essa digitalização do livro? Você tem projetos para o meio virtual?
O meio digital é mais uma plataforma para o livro, algo que reputo como formidável e que não compete com o livro impresso. O problema aqui é que os tablets oferecem tantos recursos que quem os compra hoje em dia, em geral, não é o leitor de livros. Embora isso, O MEC (Ministério da Educação) vai gastar sozinho cerca de R$ 110 milhões na compra de tablets para serem usados em sala de aula. O problema reside no fato de que ainda não se produzido um estudo definitivo sobre o uso pedagógico dos aparelhos. Quanto aos nossos projetos para o meio virtual, o que posso adiantar é que estamos fechando uma parceria fundamental, que vai nos possibilitar comercializar livros tanto em meio impresso como virtual e nas maiores empresas do setor no país.
Podemos finalizar com “o gosto” de um de seus haikais?
Deixo para o leitor uma haibun, que é uma configuração congênere ao haikai. Trata-se de uma forma que alia prosa poética e o poema em si. Esse foi inspirado pelo nascimento de minha filha, Flora. Eu também gostaria de deixar um poema inédito que fará parte de uma obra intitulada por enquanto “Cantiga dos Ilhéus”. Como o próprio título indica, trata-se de uma obra em louvor à cidade e à sua gente. Esse poema deve abrir a obra e foi inspirado por uma leitura crítica que estava fazendo sobre uma obra de Jorge Amado.
HAIBUN PARA FLORA
A flor desprendida do galho é uma tentativa de vôo, e cada vôo é sempre maior que o galho do qual se desprendeu. Há no ar, levado pelo vento, um jardim de flores múltiplas aprendendo a voar.
borboletas são flores
que afinal foram voar –
voa, minha flor!
***
uma flor pousou
na minha vida de poeta –
eu sorri para ela.
Falar de Jorge Amado
Pensei um poema
sobre as coisas de Jorge
mas o poema é contrário
às nossas vontades
Essa lagarta-de-fogo
passando passando
se arrastando
entre meus pés
frágil feito a vida
e sem ideia alguma de vida
repentinamente
torna-se a matéria
sobre a qual
meu poema
vai se debruçar
No lugar dessa lagarta
o Quincas Berro D’água
morto e cheio de vida
poderia estar
Isso porque ninguém
sabe como se faz um poema
como fazer Gabriela
entrar no poema
como lembrar de Jorge Amado
se Jorge Amado
foi a voz dos esquecidos
Ninguém vai dizer em um poema
o que vai
nas entrelinhas de Mar Morto
como Iemanjá escolhe seus filhos
ou no que está posto
em Pastores da Noite
como Ogum pode ser o padrinho
do filho do negro Massu
Se Tieta não entrar no poema
não culpem o poeta
pois no seu corpo
apenas o que dele sangra
e assim se torna
inefável
Enfim, ninguém explicará
de onde veio esse chamado
para sem querer
falar de Jorge Amado
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Tacila
Mendes, 26 anos, é
comunicóloga e especialista em Audiovisual pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Além de
fotografar e dar aulas nesta área, se envereda pela produção cultural da
região, escrevendo projetos para
captação de recursos e trabalhando também como assessora de imprensa. Fez parte da equipe da 1ª e da 2ª MUSA – Mostra Universitária Salobrinho de
Audiovisual; do projeto
Afrofilisminogravura; do 1º Festival de Cinema Baiano - FECIBA; o Bahia Sound
System e do Memórias do rio Cachoeira.
Gosta também de cantar e faz parte do projeto
"Mulheres em Domínio Público", do qual é uma das quatro
intérpretes. Foi eleita Conselheira
Municipal de Cultura de Ilhéus no setor de Audiovisual (2011).
Como gosta de conhecer gente, seus estilos e
formas de pensar, lugares e tudo que lhe parece diferente e interessante, propõe
um papo "Entre Vistas" a fim de descortinar esses mundos...