Comprei um desses blocos de papel para
treinar a verve (vez ou outra envio uma crônica para o jornal). É necessário
exercitar a vontade. E o pior de tudo é que eu, analisando de verdade, não tenho
treinado nada ultimamente, a não ser um ping-pongzinho nas minhas tardes sem
ofício e sem função, mirando a bola e simplesmente descendo o braço. É bom e eu
até que gosto: as crônicas nem sempre conseguem extrair todas as mazelas e intempéries.
Só que o ping-pong, descobri depois de matutar um pouco, sentado na minha velha
e conhecida privada, mandando ver, jamais me transformaria num homem famoso e
reverenciado, cheio de bocetas loucas, lindas e histéricas correndo atrás de
mim – os chineses, afinal de contas, estão sempre por aí, mirando a bola bem
melhor que eu. Acabou então que as piadinhas nas reuniões familiares, os amigos
advogados na mesa de bar e a própria vida em si têm me levado direto à tal
objetividade universal, às camisas engomadas e aos currículos com mais de cinco
laudas, todos cheios de invenções.
Então o dia em que eu, numa vã
tentativa de me estabelecer profissionalmente, me apresentei a secretaria de transito
e transportes da prefeitura municipal: sentado num banco, esperei por mais de
quarenta minutos sem que ninguém me notasse – um pessoal analisando papéis,
entrando e saindo de uma sala para outra, apressados, sem parar. Garanto que
Hemingway, numa situação dessas, já teria esmurrado alguém, pensei. Será que
ninguém me via? Notei então, sentado lá no canto, grande como o mamute da era
do gelo, maior até que eu, uma espécie de sósia de Barry White olhava para mim.
- Sou Rodriguez – falei, me empertigando todo
na sua frente -, o novo contratado. Mandaram um aviso, era para eu vir aqui.
Ele me encarou, depois se levantou e
caminhou até a parede, onde enxerguei algumas folhas de papel dependuradas,
nomes e números, dezenas deles. Ficou olhando para aquilo por um bom tempo, murmurando
baixinho.
- Rodriguez – disse, virando-se, logo
depois -, o seu nome não consta na lista.
- E isso significa o quê? – perguntei.
- Não sei. Vá até o quarto andar e
procure dona Vânia Cristina, ela pode te dizer o que isso significa.
E lá fui eu em direção ao quarto andar
à procura de Vânia Cristina, que bem poderia ser uma das minhas leitoras
eventuais, uma morena de pernas grossas e seios fartos que adorava literatura,
com seus cabelos nos ombros e sorriso fácil, provavelmente culta e paciente e
carinhosa demais. Eu imaginava essas coisas, subindo os degraus da escada: a
vida preparava grandes surpresas para os homens corajosos e era justamente por
isso que eu gostava tanto de viver.
A recepcionista abriu os seus dentes
quando me viu. Talvez me imaginasse algum chefe de gabinete. Com uma voz aguda,
me informou que a dona Vânia Cristina estava viajando, só retornaria em alguns
dias. Não importava. Sentei-me numa cadeira perto e contei a ela sobre a minha
situação. Ela me escutava atentamente. Quando acabei, me olhou e disse que
aquele meu caso só mesmo a dona Vânia Cristina, após chegar da viagem, poderia
resolver.
Saí dali intrigado, suspeitando que as
coisas poderiam não estar indo tão bem como eu gostaria.
Passei alguns dias em casa, lendo
livros, vivendo um pouco a Paris dos anos 20. Devia ser uma beleza por lá naquela
época. Aproveitei e joguei também umas partidinhas de ping-pong, com o celular
no bolso da bermuda, na expectativa, só que ele não deu sinal. Em que lugar
estaria Vânia Cristina, eu pensava entre um ponto e outro, a morena que lia
minhas crônicas e uns poeminhas do Pound toda noite antes de dormir?
- Ela chegou, mas no momento está participando
de uma reunião – me disse a recepcionista, quando voltei, na semana seguinte.
- Essa reunião vai demorar?
- O dia inteiro, provavelmente.
- Sério?
- Sim.
- E você falou pra ela que estive aqui?
- Ainda não tive a chance, me perdoe.
Mas, se quiser, posso te ligar quando ela ficar a par de tudo e já tiver uma
resolução.
- Ok...
Ela não teve chances, esqueceu ou não
quis falar? Aquela dificuldade toda começava a me preocupar de verdade. Algo,
lá no fundo da alma, me fazia pensar que talvez a secretaria de transito e transportes
do município tivesse analisado o meu currículo mais atentamente, nos dias em
que eu esperava, imaginando a prosperidade. Será que eu fazia parte de alguma
lista negra secreta? Será que investigavam o meu histórico e os dias de
maresia, as noites de divagações nas mesas de bar cobravam agora o seu preço?
Ou será que achavam as minhas crônicas ruins? Eu imaginava as possibilidades e
a cada instante a minha cabeça enchia-se de dúvidas e teorias, de quase certezas
também. Saí para espairecer, encontrei com o Barry White, aquele do primeiro
dia, na escada fumando um cigarro.
- Ô, rapaz, você sumiu! – ele falou,
como se fossemos amigos.
- Ainda resolvendo a minha estória,
mas não demora já estou na ativa com vocês.
- Conversou com a dona Vânia Cristina?
- Estou esperando ela sair da reunião.
- Que reunião? Falei com ela há 10
minutos, não tinha nenhuma reunião marcada.
- Mesmo?
- É.
Apertei a mão do Barry, dei uma
desculpa esfarrapada, falei que tinha me enganado sobre a tal reunião e
retornei ao quarto andar.
- Soube que a reunião acabou, gostaria
de conversar agora com dona Vânia.
- Quem te disse que a reunião acabou?
- Não importa, preciso falar com ela.
- Olha, vou ser sincera com você, a
dona Vânia não vai poder te atender hoje.
- Porquê?
- Porquê ela está muito atarefada.
Então tive uma idéia maluca.
- Pois você diz a ela que eu vim
tratar do assunto do jornal. A entrevista.
- Como assim? – ela me perguntou.
- Trabalho para o jornal também, se
você não sabe. Creio que ela deve estar por dentro dessa minha visita.
Aí a recepcionista me olhou com aquela
cara que tinha, uma cara de gente chata, o nariz apontando para frente, a boca
meio retorcida, como se eu estivesse falando chinês ou qualquer coisa assim.
Depois de alguns segundos, no entanto, acabou entrando na sala de dona Vânia e
fechou a porta atrás de si. E eu então estava sozinho, os minutos passando, um
quadro de um antigo prefeito na parede, ele de bigode e sorrindo para mim. Eu
tentava imaginar o que o fazia tão feliz – seus olhos brilhavam na foto.
A recepcionista voltou.
- Dona Vânia Cristina vai te atender,
ficou curiosa sobre essa entrevista.
Eu havia conseguido. Vencia as
barreiras e finalmente ia encontrar uma mulher que tinha classe, uma das boas,
ee com meu destino também.
Caminhei até a porta decidido, da
mesma forma, imagino eu, que Hemingway caminharia também. Girei a maçaneta e
entrei na sala. Vi outras fotos na parede, todas de antigos prefeitos sorrindo
pra mim. Havia ainda um tapete vermelho no chão, um conjunto de cadeiras no
centro, e, do outro lado, colada à janela, uma imensa mesa de madeira de lei,
dessas antigas. Era lá que Vânia Cristina estava, metida num vestido amarelo,
um colar de bolinhas azuis ao redor do seu pescoço. Foi uma surpresa pra mim.
Ela não tinha os lábios carnudos, como eu imaginara, nem os seios fartos ou as
pernas grossas, tampouco a sensualidade, o jeito carinhoso, a graça que me fez
acreditar ter. Vânia Cristina, a mulher que eu pensara ser a minha sorte e a
minha salvação, era apenas uma velha, com cerca de sessenta e poucos anos, e
olhava-me com uma cara de tédio, como se eu fosse o carteiro ou o homem do gás.
- Opa - eu disse para ela.
- Boa tarde, em que posso ajudar?
E ali, naquela sala, de frente para o
que o meu sonho havia se transformado, eu repentinamente perdi a voz e os
pensamentos se embaralharam – em questão de segundos, me senti completamente
paralisado. Ela levou uma das mãos ao queixo e ficou me observando. Notei seu
rosto seco e afundado, as veias azuladas entre os anéis. Era diferente, mas
outra vez o gosto amargo ganhando o céu da boca. Um magrelo de óculos me olhando
da parede, feliz, e eu que nunca fui muito chegado em política nem nas
histórias que contavam. Minha vida era outra, feita de sonhos impossíveis e
algumas decepções. Minha vida era aquela senhora olhando para mim, coçando o
queixo, de certo achando que eu era algum tipo de imbecil ou de retardado,
considerando aquela minha visita muito maçante, nada demais no seu rosto, nada
de menos, somente um enorme desconforto, refletindo talvez o desconforto que
havia no meu.
- Algum problema, meu filho?
Então descobri que eu não tinha o que
falar para ela, embora de alguma forma soubesse que teria de falar algo. Por
isso, quem sabe, falei a primeira coisa que me veio à cabeça naquele instante,
com uma voz um pouco alta para os padrões da sala.
- Quais seus autores preferidos,
Vânia?
- Não entendi – ela respondeu,
levantando uma das sobrancelhas -, é sobre isso a matéria para o jornal?
- Não existe matéria, na verdade - eu
disse de uma vez -, queria te conhecer. Mas você me enganou. Aliás, todos neste
prédio me enganaram, todos, a não ser o Barry White lá embaixo. Só ele
respeitou os meus sentimentos, só ele tem uma alma digna de apreciação.
- Olha, Rapazinho, hoje não estou com muito
tempo para brincadeira – ela falou, alterando-se.
- Quem não tem tempo para brincadeiras
sou eu, minha senhora. Já estou de saco cheio de brincadeiras, tenha certeza
disso. Me diga: o que é que vocês viram no meu currículo que fosse tão ruim?
São as minhas crônicas? Me diga, Vânia, eu quero saber. Tenho esse direito. Não
pense que, por ser assim tão bajulada, pode ir pisando nos outros por aí, como
se não fossemos nada, fazendo o que quiser. Saiba que, embora ainda não tenha
conhecimento, eu sou um dos grandes também, eu sou um dos fodões! E saiba de
outra coisa, minha querida: tudo o que fazemos nessa existência volta pra nós um
dia – tanto faz se for pro lado do bem ou do mal. Anote isso. É possível que te
seja útil nesse restinho de vida que ainda tem.
- Você é completamente louco – ela
gritou, usando de uma força que não imaginei que viesse a ter – saia de minha
sala agora, já, antes que eu chame a guarda municipal!
Então os segundos em que ficamos nos
encarando demoraram muito a passar. A porta foi aberta atrás de mim, escutei a
voz da recepcionista perguntando se estava tudo bem, dona Vânia. Vânia não
respondeu, eu também não. Já tínhamos falado o suficiente. Virei-me e saí,
deixando as duas para trás. Desci as escadas e logo ganhei as ruas, juntando-me
às pessoas que caminhavam para algum lugar. Deus continuava comigo?, eu queria
saber. A vida ainda era algo bom? Não sabia, posto que tudo estava envolto em
neblina e confusão, em ferrugem e um certo carnaval. Talvez no dia seguinte,
pensei, eu venha a ter alguma resposta, elas que sempre chegam atrasadas. Talvez
tudo clareasse com o tempo. Por outro lado, calculei instintivamente, se não clareasse
também não fazia mal: eu ia apenas seguir em frente, do mesmo jeito de sempre,
o que não era de todo ruim. Continuaria acordando na hora em que quisesse, deixando
os cabelos e a barba crescerem, a intemperança, e me restaria ainda a melhor
parte de tudo – os meus blocos de papel na estante e as tardes sem ofício ou
função, mirando o chinês do outro lado da mesa e simplesmente descendo o braço,
cortando a bolinha sem piedade ou misericórdia - da mesma forma, imagino, que
Hemingway cortaria também.
Rodrigo Melo é filho de Eduardo e Márcia, irmão de Juliano e Murilo, casado com Thalita, pai de Amaralina, uma menina linda, e é também brodão de Diná e Brooks, que joga umas danças por aí. Além disso, escreve uma coluna, blablablá, no Diário de Ilhéus, quase todos os sábados.
fonte da imagem: fonte da imagem: http://santacruzdotrairi.blogspot.com.br/2012/02/janela-do-hospital-uma-linda-historia.html
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